Poema dos Inocentes Tamoios
Andávamos bem correndo
por nossas matas...
Ficávamos bem pescando
em nossas águas ...
Flechávamos bem de longe
a nossa caça...
Corriam bem pelas ondas
nossas igaras...
Furávamos bem por gosto
a nossa cara...
Com a pele preta e vermelha
mui bem pintada ...
Fazíamos bem de penas
roupas de gala ...
Soavam bem pelos ares
nossos maracás...
Bebíamos bem do vinho
que fermentava ...
Dormíamos bem nas redes
das nossas tabas ...
Bem tratávamos o amigo
que nos buscava ...
Mas os nossos inimigos
que bem matávamos!
Canoas altas e enormes
aqui pararam.
Homens como nunca vimos
nos acenaram.
Traziam roupas bonitas
em muitas caixas ...
Davam-nos pentes e espelhos
que rebrilhavam :
pediam-nos pau vermelho
que lhes cortávamos.
Traziam gorros, tesouras,
panos e facas:
Pediam peixes e frutas,
saguis e araras.
Já estávamos mal dormindo
em nossas tabas:
partiam os estrangeiros,
outros voltavam.
Andávamos mal correndo
em nossas matas:
longe, as canoas nas águas
logo estrondavam.
As moças dentro das ondas mal se
banhavam;
borboletas, passarinhos
já se assustavam.
Pelas brenhas e lagoas
fugia a caça.
Mal corriam nossas flechas,
lentas e fracas,
pois vimos flechas de fogo
muito mais bravas,
com os novos homens que vieram
e nos contaram
histórias de sua terra,
extraordinárias,
e à nossa terra subiram
e andar-andaram.
Nossos bens e nossas vidas
se misturaram;
e, dentro das nossas mortes,
o sangue e as raças,
como a água doce dos rios
e a água salgada ...
Ai, meus avós, que este mundo
é coisa rara:
tudo começa de novo
quando se acaba !
Cecília Meireles (1901-1964)